Quarta, 26 de março de 2014

PORTO ALEGRE É ASSIM! – 2

Hoje, 242 anos.

Tipos

Vivo num bairro metido a moderninho, com muita gente na faixa dos 20, 30 anos. Muitos querem morar na Cidade Baixa, virou moda. Não faço parte desta turba, porque estou aqui há 17 anos. Para terem uma idéia, quando vim morar por aqui, na minha rua havia apenas um bar – já tinha fechado o lendário Doce Vida. Hoje, apenas na minha quadra são 17 bares e restaurantes.
Como vem gente de todo o lado, observo tipos estranhíssimos.
Todo o dia vejo um sujeito, sempre com um ar de orgulho, que tem o físico e a cara do Woody Allen. Sério. Tem até aquele óculos preto e o cabelo escasso. Magro de dar pena. Muito branco.
Mas o mais interessante são as gurias. Várias, inúmeras com um visual Mary Poppins com cabelo estilo Branca de Neve. Só que roxo. Algumas também com aqueles óculos retangulares, de armação grossa. Muito estranhas. Para completar, vestem-se em brechós. Esquisitas, mesmo.
Geralmente estas gurias se vestem como mulheres normais até a cintura, em que pese as roupinhas anos 70, 80. Mas daí para baixo é um horror. Usam umas meias até os joelhos, com cores berrantes e tênis – o chulé deve ser extraordinário. As saias são largas, de brim desbotado.
O mais triste é que fazem questão de estragar os cabelos. Sempre cortados desparelho e pintados de verde ou vermelho. As mais discretas pintam de roxo algumas mechas.
A impressão que passa é que estes tipos fazem questão de ficar feias. Não pode dar um bom resultado a união de cabelo roxo, mal cortado, roupa de brechó e óculos retangular. É verdade também que essas gurias não tiveram a ajuda da natureza e os rostos não são exemplos de beleza. No popular, como são feinhas, chamam a atenção de outro jeito.
Há algum tempo uma jornalista escreveu um artigo criticando um dos meus métodos “de inspiração”, sem citar o meu nome. Disse num seminário, em que ela estava, que bastava dar uma rápida volta pelo bairro em que vivo ou mesmo ir na sacada de casa para ter um assunto para uma crônica. A mocinha estranhou o método.
É porque a coitada não vive na Cidade Baixa.

Cenas

Num domingo, fui me deitar tarde. Não tinha mais nada de interessante na TV. Já estava quase entregue, quando comecei a ouvir muita gente falando, aos berros, na rua.
Moro no primeiro andar e escuto tudo que acontece na rua. Esperei, porque não iriam manter aquela gritaria por muito tempo. Me enganei. A cada minuto, a gritaria aumentava, mesclada com risos nervosos. Resolvi me levantar e dar uma olhada pelas frestas da veneziana do quarto. Contei mais ou menos uns 15 guris e gurias. E não eram oriundos de “comunidades carentes”. Todos com roupas da moda e estavam encostados em carros com as portas abertas.
Fui até a sala e arrisquei uma olhada. Eram mesmo de classe média para cima.
Acendi um cigarro e fui para a sacada. Não demorou muito e um dos guris me viu.
– Ei, tem um sapato da minha amiga ali, logo abaixo daquela janela, será que tu não podia pegar pra nós?
Olhei e vi a peça numa aba, abaixo da janela do quarto dos meus filhos, por onde passam os fios do telefone e net.
– Bah, não dá, porque os guris estão dormindo e uma das camas fica junto à janela.
Aí já estavam todos olhando pra mim, como se fosse o carrasco do sapato da mocinha. Mas como aquele sapato foi parar ali?
– Pô, olha só, o pezinho dela está nu! foi o primeiro apelo.
– Dá um jeitinho! pediu, dengosa, uma das amigas.
– Tenta, vai! gritou outra.
– Salva a nossa Cinderela!!
Venceram. Fui na cozinha, peguei a vassoura e entrei em total silêncio no quarto dos guris. Quando consegui abrir a janela, palmas e gritaria me saudaram. E eu com o dedo na boca pedia silêncio. Em vão. Tiravam até fotos do início da operação de resgate.
Coloquei o cabo da vassoura dentro do sapatinho. Tinha que ser com cuidado, porque poderia cair no toldo do bar, instalado numa loja no térreo do prédio. Enfiei bem o cabo da vassoura e atirei. Operação bem-sucedida. Mais palmas, assovios e gritos. Mais fotos.
Não demorou 15 minutos e me vi livre da gurizada.
E pude dormir. Não sonhei com o sapatinho da Cinderela.
Anos antes, ao chegar em casa, vi um monte de gente na frente do meu prédio. Me juntei a eles. Era uma história inacreditável.
A minha vizinha criava um gato no apartamento. Deve ter dado uma loucura no bichano e ele pulou. Como para se matar ou arriscar a liberdade. Só que caiu no toldo do bar e dali não arriscou mais sair.
Muitas sugestões. Um propôs buscar em casa uma escada. Outro disse que chamaria os bombeiros. Várias alternativas, todos falando ao mesmo tempo.
Aí alguém fala mais alto.
– Olha ali, a salvação do gato!
Era de não acreditar. Dois sujeitos e uma mulher vinham com pernas-de-pau, fantasiados, pela mesma calçada.
Um deles se aproximou do toldo e chamou o bichano. Ele foi em direção a suas mãos, meio assustado. Alcançou-o para a dona, que ria e chorava.
Aplausos para o herói.

(Publicado no livro A REVOLUÇÃO DA MINHA JANELA, de 2008)

Um comentário em “Quarta, 26 de março de 2014”

  1. Bah! Tu é feliz e não sabe…moro a algumas quadras dos inferninhos do Centro e era tiroteio e um movimento de putas, traficantes e afins em plena madrugada que não devia nada ao movimento de horário comercial (normal). Isso até o mês passado, daí ouve uma calmaria porque fecharam os antros (por causa das eleições? Não sabia que valia a pena cortejar os eleitores que moram no Centro, deve ser um contingente razoável então!), mas na última semana já comecei a ouvir uns burburinhos pós-meia-noite vindo da rua que parece sugerir que vai (re)começar tudo de novo…claro que não nasci ontem e sei que vão molhar as mãos das 'otoridades' e por isso o oferecimento de vaginas e drogas deve voltar em breve a todo vapor. Mas, achava que ao menos iriam segurar a calmaria até a Copa passar. Meses atrás, a coluna do Zini não noticiava que o ex-prédio da CRT seria até o QG da organização local da Copa?!

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