ETNA, O VULCÃO, ERA MINHA MÃE
Ela costumava dizer que quando o vulcão Etna entrava em erupção ela ficava a mil, “ninguém me segura”.
A mais pura verdade.
Etna Braz Gulart, depois Etna Gulart Prévidi.
Teve uma história maravilhosa.
Nasceu em Melo, no Uruguai e se criou até os 15 anos em Jaguarão, fronteira com o Uruguai. Aí a sua mãe, Adylles, decidiu morar no Rio de Janeiro. Adylles, Etna e Juca (José Antônio Braz Goulart), um dos irmãos, embarcaram num vapor para o sonho de minha avó. Foram viver, por um tempo, na casa da Tia Sinhá, uma prima da Adylles.
Juca, por detalhe, não foi para a Segunda Guerra Mundial; Etna estudava e trabalhava no Iate Clube, na Urca. Praticamente não saía na rua, porque era loira e a paranoia era grande. Ela contava que recebeu várias cusparadas porque achavam que era alemã.
Nesse meio tempo conheceu o Waldemar, que na época era Waldemar Luiz Eberle Previdi – mais tarde, abreviou para Waldemar Previdi. Casaram-se logo depois que a guerra terminou. Um sufoco, porque não havia imóveis para vender e alugar. Foram morar numa casa alugada em Santa Teresa, onde meu irmão Paulo Cesar nasceu.
Mudaram-se para a Urca, onde nasci.
Mas tarde, já no início da década de 60, fomos para a rua das Laranjeiras.
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Boa a história da família Previdi. Muito feliz, sem dificuldades, sem sofrimento. Só alegrias.
Até 1966.
Por uma daquelas situações, parece, que só os outros passam, aconteceu conosco. Meu pai morreu barbaramente, menos de 50 anos. Pensei que minha mãe fosse ficar louquinha, mas resistiu.
Decidiu que iríamos morar em Porto Alegre – até hoje não entendo o motivo. A versão mais plausível é de que o outro irmão dela, Dirceu, vivia aqui, e ela estaria mais próxima dos parentes de Jaguarão e Montevidéu. Pode ser. O outro irmão, Juca, vivia em Belo Horizonte, depois São Paulo.
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O corpo do meu pai veio para Caxias do Sul, onde nasceu, e meu irmão e eu já ficamos em Porto Alegre.
Pouco via a minha mãe, porque ela estava sempre viajando – Rio, Caxias, Rio, Caxias.
Ficamos um tempo na casa do Tio Dirceu e depois alugamos um quartão num hotelzinho/pensão que tinha na avenida João Pessoa, o Palace. Minha avó, meu irmão e eu. Minha mãe quando resolveu todas as encrencas, juntou-se a nós. E trouxe o carro que ainda estava no Rio, um Fusca novinho.
De julho a dezembro vivemos lá. Aí ela comprou um baita apartamento na avenida Venâncio Aires.
Veio a mudança do Rio, ela mandou fazer móveis, tudo na mais perfeita. Até que em junho de 67 – 11 meses depois que o meu pai morreu – o meu irmão teve um acidente fatal. Com o Fusca novinho.
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Bah, aí sim, pensei que ela não resistiria.
E eu, com 13 anos, não tinha o que fazer. Etna tinha dores de cabeça infernais. Gritava, chorava, se rasgava! Eu fazia o que estava a meu alcance. Ia até o quinto andar do prédio e chamava o médico. O cara descia, aplicava uma injeção, tal e coisa, e acalmava o vulcão.
Parêntesis: o jovem médico tornou-se diretor-presidente do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e ministro da Saúde, Carlos César Albuquerque.
Ela foi melhorando e sempre que podia viajava, visitava os parentes. Passeava. Tentava se distrair.
Daquela feliz família do início desta história, restara ela e eu.
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Nos dois primeiros anos não convivi muito com ela, porque estive num internato, o Champagnat. Ela me dava tudo que queria. Para terem uma ideia, minhas férias eram em Punta Del Este ou no Rio.
Depois desse período, formamos uma dupla do barulho. Porque ela era muito mais porra-louca do que eu, adolescente. Tão despirocada que uma vez cheguei do colégio, e ela me esperava sorridente:
– Vamos morar em São Paulo.
Não é que fomos?
Vivíamos num belo apartamento no Itaim, estudava no Colégio Eduardo Prado e era sócio do Pinheiros. Férias em Santos e em Porto Alegre. No Rio.
Aí ela decidiu voltar para Porto Alegre, porque gastava muito.
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Nessa época, início dos anos 70, me dava a impressão de que ela estava bem. Mas, relembrando hoje, ela não era uma pessoa “normal”. Não era, porque o seu humor variava demais. Um exemplo: ela estava numa festa familiar, brincando, rindo, tudo numa boa. Lá pelas tantas, ela pegava a bolsa e dizia:
– José Luiz, vamos embora!!
A impressão que tinha é que ela estava sempre fugindo. E, acredito, quem a conhecia pensava o mesmo.
Também, em casa, alterava, em questão de segundos, o humor. Ela e eu conversando. Ela rindo brincando; segundos depois, estava furiosa comigo, por algum motivo. Um negócio muito estranho.
Hoje, sei lá, iriam diagnosticar que era bipolar, depressiva, por aí. Na época não tinha nada disso.
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Fui crescendo e me adaptei a ela. E ela a mim. Nos tornamos muito amigos.
Era uma baita administradora – foi viúva por 22 anos e jamais trabalhou. Só soube administrar, muto bem, o que meu pai deixou.
Comprava e vendia imóveis, ganhou um bom dinheiro na Bolsa de Valores, e não fez mais bons negócios porque alguns familiares a desencorajavam. Uma vez queria comprar uma chácara, nas cercanias onde hoje está o Shopping Iguatemi e não deixaram: “O que queres naquele fim de mundo?!”.
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Basicamente éramos amigos, aprendi muito com ela, apesar de brigarmos muito.
Sempre me deu força nas minhas escolhas, até quando decidi pedir demissão do Banco do Brasil para voltar a Faculdade de Jornalismo. Quando me acidentei, com 19 anos, ela gastou o equivalente a uma apartamento de dois quartos, na rua Santana, para me garantir um tratamento de primeira.
O vulcão era fantástico.
Em 83 inventei de ir trabalhar no Governo Brizola. Cheguei no Rio no início de dezembro. Ligava sempre pra ela.
Um dia ela lasca:
– Botei a venda o nosso apartamento da Venâncio Aires. Também vou pro Rio. Sabes que voltar é o meu sonho.
Em abril de 1984 ela comprou um apartamento em Copacabana, na Bolívar com a Copacabana.
O vulcão.
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Em 1988 ela estava feliz da vida com o neto Guilherme, nascido em 85. Nós tínhamos voltado para Porto Alegre e ela já pensava seriamente em voltar para ficar perto do neto.
Em novembro, pouco antes da eleição para prefeito, liguei:
– José Luiz, fala com o Araújo (Carlos Araújo, candidato a prefeito pelo PDT) e consegue uma passagem pra mim. É um voto a mais pra ele.
– Não dá, mãe, não tenho cara-de-pau pra pedir.
A eleição era num domingo. No sábado, de noite, apareceu um primo lá em casa – eu morava na Branquinha, na zona rural de Viamão.
No portão, ele branco, com cara de choro:
– A tua mãe, Zé.
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A Rute estava grávida do Gustavo. Não sabia se chorava ou se tentava acalmá-la, por causa do bebê. Fiz as duas coisas e ainda tomei uísques.
Afinal, a minha primeira família estava extinta. A última referência tinha ido.
No domingo de manhã cheguei ao Rio, antes do meio dia. Ela já estava no IML.
A trouxe para Porto Alegre e está junto com o Paulo Cesar, meu irmão.
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Há 25 anos.
E como é difícil a gente se acostumar.
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A jovem mamãe Etna |
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A vovó Etna com o neto Guilherme |