EDITOR CHORA DE BARRIGA CHEIA
O espaço hoje é do Janer Cristaldo – cristaldo.blogspot.com.br
A produção literária, nestes nossos dias de facilidade de edição, banalizou-se. Hoje, se você atira uma pedra num cachorro e erra, arrisca acertar um escritor. Alguns produzem dezenas de livros. Que ninguém conhece. Outros produzem um mísero livrinho e já se sentem escritores. Lembro que, em 97, na 7ª Jornada Nacional de Literatura, em Passo Fundo, eu manifestava meu espanto com uma certa Patrícia Mello, que desembarcou em Londres junto com Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque, onde fizeram leituras públicas de suas obras e lançaram livros não só na capital britânica, como também na Escócia e no País de Gales.
Dos últimos três parasitas do Erário temos notícias. Mas quem era Patrícia Mello? Fiz a pergunta a todos os professores da Universidade de Passo Fundo e aos três mil estudantes de Letras lá presentes. Ninguém conhecia Patrícia Mello. Só uma tímida voz ergueu-se, de uma professora ou bibliotecária, creio que do Rio: “Eu conheço”. Fui saber mais tarde que era colega de trabalho da Patrícia Mello. Pelo jeito, a única que sabia que a moça escrevia.
Ainda há pouco, li que participou da feira do livro de Bogotá a escritora e imortal da Academia Brasiliense de Letras, Margarida Patriota, autora de 26 livros. Alguém consegue citar algum sem uma busca no Google? – me perguntei então. Duvidei.
Vai daí que logo após minha pergunta, recebi gentil email da moça, convidando-me para uma entrevista na Rádio do Congresso e pedindo meu endereço para enviar-me alguns de seus 26 livros. Eu os recebi. Confesso jamais ter ouvido falar deles. São publicações paradidáticas, endereçadas ao mercado cativo da leitura obrigatória. Sim, Margarida Patriota existe e é escritora. Mas e daí? O Brasil está cheio de autores de 30, 40 ou 50 livros, dos quais ninguém jamais ouviu falar.
Em janeiro deste ano, eu comentava entrevista no Estadão de um editor brasileiro, Quartim de Moraes. Apesar de velho, parece não ter entendido o mundo em que vivemos. Falando da indústria do livro, afirmava:
– Longe de mim a pretensão de mudar o imutável. Satisfaço-me com a ambição de tocar o bumbo – já usei essa expressão em título recente -, ajudando a despertar consciências adormecidas pelo efeito inebriante e ilusório da “razão de mercado” aplicada ao mundo dos livros. E também com a possibilidade de levar algum ânimo aos que se renderam ao conformismo. Não sou um agente vermelho tramando contra o lucro nem um idealista ingênuo em luta com moinhos de vento. O que me move é a fé na missão civilizadora do livro. Uma convicção que a vida, o ofício de jornalista e o trabalho de editor, paixão tardia, só têm feito se fortalecer.
Missão civilizadora do livro, dizia então o editor. Nada contra. Mas uma faca serve tanto para cortar pão como também para matar alguém. Da mesma forma o livro. Serve tanto para educar como para emburrecer. O ror dos livros que emburrecem ultrapassa de longe o dos que edificam. Para cada Nietzsche ou Renan publicado no Brasil, há vinte Brunas Surfistinhas ou Chicos Buarques. É a lógica do mercado.
Quartim falava do rebaixamento da qualidade dos conteúdos – particularmente nos livros de interesse geral, ficção e não ficção -, provocado pela preterição dessa qualidade em benefício do potencial de venda de cada título.
– É a tal história: livro bom é livro que vende bem. Então, vale tudo. Depois, mas não menos grave, o crescente estreitamento do espaço para conteúdos ficcionais brasileiros, pelas mesmas razões. Em outras palavras, literatura brasileira não vende bem, portanto, não se publica, como preferem acreditar editores e livreiros para quem livro é um produto como qualquer outro e, como tal, em nada difere de um tubo de dentifrício ou de um saco de batatas.
Terça-feira passada, Quartim de Morais voltou ao assunto. Em artigo para o mesmo Estadão, repete sua lengalenga.
“Diante do crescente estreitamento de espaço para a literatura brasileira em nosso mercado editorial, fenômeno transparente nas listas de obras de ficção mais vendidas no País, coloca-se a questão vital: há saída para esse impasse que põe em risco nossos valores culturais? A resposta me parece, infelizmente, óbvia: um redondo não, no que depender do big business editorial.
“Na verdade, o problema só tende a se agravar desde que, a partir do último quartel do século 20, a razão de mercado desembarcou soberana em nosso mundo dos livros, trazida pelos ventos da globalização. O mercado editorial brasileiro passou, desde então, a ser inexoravelmente dominado pelos interesses de um subcapitalismo vira-lata incapaz de enxergar um palmo adiante de sua irrefreável obsessão por lucros gordos e imediatos. O livro virou uma mercadoria como outra qualquer. Livro bom passou a ser livro que vende bem, tout court.”
O editor, como tanto outros que protestam contra a tal de globalização, parece esquecer que vive no mundo capitalista, onde o lucro é a mola de toda atividade produtiva. Daí que livro bom passe a ser o que vende bem vai uma longa distância. De modo geral, quase absoluto, livro que vende bem é sinônimo de péssima literatura. A culpa será dos editores? Diria que não. A culpa é do leitor medíocre, que prefere obras de auto-ajuda, romances rosa, misticismo barato e ficções irrelevantes. O editor dá o que o público pede. Verdade que algumas obras de qualidade conseguem furar este cerco. São em geral clássicos, que fizeram carreira ao longo dos anos.
A questão é antiga. Desde há muito se discute se livro pode ser vendido como se vende sabonete. Poder, pode. Para uma clientela idiota, o livro ideal é o livro idiota. Os editores sabem disto. A difusão da boa literatura não depende do editor, mas do público leitor. Não adianta tentar vender Dostoievski para quem prefere Paulo Coelho ou Machado de Assis. Mas o equívoco do editor está mais adiante: literatura brasileira não vende bem, portanto, não se publica.
Como não se publica? O mercado nacional do livro está tomado por mediocridades tupiniquins, empurrados goela abaixo nos vestibulares e currículos acadêmicos. Literatura brasileira é de venda forçada. Costumo falar do livro estatal. Como nos antigos países comunistas, no Brasil escritor precisa ser amigo do rei. Ou pelo menos amigo da crítica universitária. Nisto reside a pobreza da literatura nacional.
Quartim diz-se preocupado com a a enorme dificuldade que os escritores brasileiros, aqueles que se dedicam à arte literária, encontram para publicar suas obras. Está chorando de barriga cheia. Pelo jeito, ainda não descobriu o livro digital.
Que dificuldade? Editor, ele ainda acredita no fetiche do livro em papel. Nunca foi tão fácil publicar. Hoje, ninguém pode queixar-se da falta de editor. Basta você digitar seu livro e jogá-lo na Internet. Escritor, hoje, não depende de editoras. Dependem de editoras os pavões que querem ver seus títulos em vitrine e dar tardes de autógrafos. Nestes dias de e-books, todo autor pode ser editor. A um custo zero de publicação.
Quartim pergunta-se se uma editora sem fins lucrativos voltada para obras de interesse geral e, sobretudo, disposta a abrir espaço para nossos ficcionistas é uma opção viável no Brasil.
“O País já tem um bom número de casas publicadoras que não visam ao lucro, geralmente vinculadas a instituições de ensino públicas ou privadas. Toda universidade é obrigada por lei a manter uma editora própria, cujos catálogos geralmente abrigam sua produção acadêmica, além de conteúdos relacionados aos cursos que ministra. A Associação Brasileira de Editoras Universitárias (Abeu), com 25 anos de existência, tem mais de cem associados e participação ativa nos eventos livreiros do País. Mas essas editoras trabalham geralmente com nichos muito específicos – quase não publicam, por exemplo, ficção literária – e permanecem praticamente fora do mercado, sem acesso às livrarias”.
Cá entre nós, as editoras universitárias, se tivessem chegado a este século, há muito deveriam ter abandonado o livro-papel. Computador é hoje instrumento obrigatório de ensino e toda a comunidade acadêmica tem acesso à Internet. Mais ainda: se os acadêmicos são pagos para produzir textos, estes textos deveriam ser devolvidos gratuitamente ao contribuinte que os paga. (Esta é a tese do Teotonio Simões, da ebooksbrasil). Se a preocupação de Quartim é com a produção acadêmica, isto decorre do fato que as universidades se comportam como se ainda não tivéssemos saído do século passado.
Ao final do artigo, o editor diz que voltará ao tema. Voltarei também. Quartim está preocupado com um fetiche de séculos passados, quando o papel era o suporte mais viável encontrado para a produção livreira. Ora, os séculos passados simplesmente passaram.